quinta-feira, 22 de setembro de 2016

A Bela Adormecida na geladeira - Primo Levi

Resultado de imagem para A Bela Adormecida na geladeira - Primo LeviA Bela Adormecida na geladeira
Conto de inverno

PERSONAGENS
Lotte Thörl
Peter Thörl
Maria Lutzer
Robert Lutzer
Ilse
Baldur
Patricia
Margareta
Em Berlim, no ano 2115.
Lotte Thörl, sozinha

LOTTE:  ...  E  assim  se  passou  mais  um  ano,  estamos  de  novo  em  19  de dezembro, esperando hóspedes para a festinha habitual. (Barulhos de louça e de móveis arrastados.)  Eu  não  gosto particularmente  dos  hóspedes.  Aliás,  antigamente  meu marido me chamava de “ursa maior”. Mas agora não: de uns anos para cá ele mudou, tornou-se  uma  pessoa  séria  e  tediosa.  A  ursa  menor seria  nossa  filha  Margareta: coitadinha!  Só  tem  quatro  anos.  (Passos,  barulhos.)  Não  que  eu seja  uma  mulher esquiva e selvagem: simplesmente me irrita uma recepção com mais de cinco ou seis convidados. No final é uma grande bagunça, discursos sem pé nem cabeça, e eu tenho a triste impressão de que ninguém percebe a minha presença, salvo quando circulo com as bandejas.
Além disso, não costumamos receber pessoas: só duas, três vezes por ano, e raramente aceitamos convites. É compreensível: ninguém pode oferecer aos próprios hóspedes  o  que  nós  oferecemos.  Há  quem  tenha  belos  quadros,  Renoir,  Picasso, Caravaggio; há quem tenha um orangotango domesticado ou um cachorro ou um gato vivos; há quem disponha de um bar com os estupefacientes mais avançados; mas nóstemos Patricia... (suspiro) Patricia!
(Campainha.) Os primeiros chegaram. (Bate  numa  porta.)  Venha,  Peter,  estou aqui.
Lotte e Peter Thörl; Maria e Robert Lutzer.
Todos se cumprimentam.
ROBERT:  Boa  noite,  Lotte;  boa  noite,  Peter.  Que  tempo  horroroso!  Há quantos meses não vemos o sol?
PETER: E há quanto tempo não vemos vocês?
LOTTE:  Oh,  Maria!  Você  está  mais  jovem  que  nunca.  E  que  casaco maravilhoso! Presente do marido?
ROBERT: Já não são uma novidade. É um marciano prateado: parece que os russos  importaram  uma  grande  quantidade  deles;  podem  ser  encontrados  no  setor oriental  a  preços  bem  razoáveis.  No  mercado  negro,  é  claro:  é  uma  mercadoria controlada.
PETER: Eu te invejo e te admiro, Robert. Conheço poucos berlinenses que não  se  queixam  da  situação,  mas  não  conheço  nenhum  que  se  safe  com  a  sua desenvoltura. Cada vez mais me convenço de que o amor verdadeiro e apaixonado pelo dinheiro é uma virtude que não se aprende, mas se herda com o sangue.
MARIA:  Quantas  flores!  Lotte,  estou  sentindo  um  maravilhoso  perfume  de aniversário. Parabéns, Lotte!
LOTTE (aos dois maridos): Maria é incorrigível. Mas se console, Robert, não foi o casamento que a deixou assim, tão deliciosamente distraída. Ela já era assim na escola:  nós  a  chamávamos  de  “a  desmiolada  de  Colônia”,  e  convidávamos  amigos  e amigas  de  outras  turmas  para  assistir  às  suas  provas  orais.  (Com  severidade  burlesca)
Sra. Lutzer, tenha mais atenção. É assim que prepara as lições de história? Hoje não é o meu aniversário: hoje é 19 de dezembro, aniversário de Patricia.
MARIA:  Oh,  me  desculpe,  querida.  Tenho  realmente  uma  memória  de galinha. Então hoje à noite haverá o descongelamento? Que beleza!
PETER: Claro, como todos os anos. Vamos apenas esperar a chegada de Ilse e Baldur. (Campainha.) Aqui estão: atrasados, como sempre.
LOTTE: Seja mais compreensivo, Peter! Você  já viu um casal de namorados chegar na hora marcada?
Ilse e Baldur entram. Cumprimentos de ambas as partes.
Lotte e Peter; Maria e Robert; Ilse e Baldur.
PETER:  Boa  noite,  Ilse;  boa  noite,  Baldur.  É  um  privilégio  vê-los  de  novo: vocês estão a tal ponto apaixonados um pelo outro que os velhos amigos não existem mais para vocês.
BALDUR:  Por  favor,  nos  perdoem.  Estamos  nadando  contra  a  burocracia:  o meu doutorado, os papéis para a prefeitura, o salvo-conduto para Ilse, o beneplácito do  partido;  o  visto  do  prefeito  já  chegou,  mas  ainda  estamos  esperando  o  de Washington e o de Moscou, principalmente o de Pequim, que é o mais difícil de ser obtido. É de deixar louco. Há séculos não vemos ninguém: ficamos pálidos e feios, temos vergonha de exibir os nossos rostos por aí.
ILSE:  Chegamos  tarde,  não  é?  Somos  mesmo  dois  cafonas.  Mas  por  que  não começaram sem a gente?
PETER: Nunca faríamos isso. O momento do despertar é o mais interessante: ela é tão graciosa quando abre os olhos!
ROBERT:  Vamos,  Peter,  é  melhor  começarmos,  senão  terminaremos  de madrugada. Vá pegar o manual: e não faça como naquela vez, a primeira, acho (quantos anos atrás?), quando você errou um procedimento e quase estragou tudo.
PETER  (incomodado):  Estou  com  o  manual  aqui  no  bolso;  mas  já  sei  as instruções de cor. Vamos para a outra sala? (Rumor de cadeiras arrastadas e de passos; comentários; murmúrios de impaciência.) ... Um: interromper o circuito de azoto e o de gás  inerte.  (Executa:  rangido,  sopro  abafado,  duas  vezes.)  Dois:  acionar  a  bomba,  o esterilizador Wroblewski e o microfiltro. (Barulho da bomba, como de uma motocicleta distante;  alguns  segundos  de  espera.)  Três:  abrir  o  circuito  de  oxigênio  (começa  um chiado cada vez mais agudo) e girar lentamente a válvula até que o indicador atinja a marca de vinte e um por cento...
ROBERT: Não, Peter, vinte e quatro por cento: no manual está escrito vinte equatro  por  cento.  Se  eu  fosse  você,  colocaria  os  óculos.  Não  leve  a  mal,  temos  a mesma idade, mas eu colocaria os óculos, pelo menos em certas ocasiões.
PETER (de  mau  humor):  Sim,  você  tem  razão,  vinte  e  quatro  por  cento.  Mas tanto  faz,  vinte  e  um  ou  vinte  e  quatro  por  cento:  já  fiz  isso  outras  vezes.  Quatro: deslocar gradualmente o termostato, elevando a temperatura à velocidade de cerca de dois graus por minuto. (Ouve-se a batida de um metrônomo.) Agora, silêncio, por favor. Ou pelo menos não falem tão alto.
ILSE (sussurrando): Ela sofre durante o descongelamento?
PETER (voz baixa): Não, em tese, não. Mas é por isso que é necessário fazer tudo  certo,  seguir  exatamente  as  prescrições.  Mesmo  durante  a  temporada  na geladeira,  é  indispensável  que  a  temperatura  seja  mantida  dentro  de  limites rigorosos.
ROBERT: Certo: basta qualquer grau a menos e adeus, li que alguma coisa se coagula nos centros nervosos, e aí eles não acordam mais, ou acordam deficientes e sem memória; já se a temperatura estiver um pouco acima do padrão, eles retomam a consciência,  mas  sofrem  terrivelmente.  Imagine  que  horror:  sentir-se  inteiramente congelado, mãos,  pés,  sangue, coração,  cérebro,  e não  poder  mover um  dedo,  nãopoder bater as pálpebras, não poder emitir um som e pedir socorro!
ILSE: Terrível! É preciso coragem e muita fé. Quero dizer, fé nos termostatos. Eu, por mim, sou louca por esportes de inverno, mas sinceramente não trocaria de lugar com Patricia nem por todo o ouro do mundo. Soube até que ela já estaria morta se, quando as experiências começaram, não lhe tivessem injetado aquele... como se diz... an-ti-con-ge-lante. Sim, aquele mesmo que no inverno colocamos nos radiadores dos carros. Mas é lógico: senão, o sangue congelaria. Não é verdade, sr. Thörl?
PETER (evasivo): Dizem tantas coisas...
ILSE (pensativa): Não me surpreende que tão poucos tenham se submetido a isso. Palavra, não me surpreende. Me disseram que ela é linda: é verdade?
ROBERT: Esplêndida. No ano passado eu a vi de perto: uma carnação como hoje não existe mais. Vê-se que, apesar de tudo, o regime alimentar do século XX, ainda  em  grande  parte  natural,  devia  conter  algum  princípio  vital  que  até  hoje desconhecemos.  Não  que  eu  desconfie  dos  químicos:  ao  contrário,  tenho  o  maior respeito  e  estima  por  eles.  Mas  acho  que  são...  como  dizer...  pretensiosos,  sim, pretensiosos. Na minha opinião, há sempre algo a descobrir, ainda que secundário.
LOTTE (de  má  vontade):  Sim,  ela  de  fato  é  graciosa.  De  resto,  é  a  beleza  da idade. Tem uma pele de recém-nascida: para mim, é o efeito do supercongelamento. Não  tem  uma  cor  natural,  é  muito  rosada  e  muito  branca,  parece...  sim,  parece  um sorvete, desculpem a comparação. Até os cabelos são demasiado louros. Para dizer a verdade,  me  dá  a  impressão  de  ser  um  pouco  passada,  faisandée...  porém  é  bela, ninguém  pode  negar.  Também  é  muito  culta,  educadíssima,  inteligentíssima, audaciosa, superlativa em todos os aspectos, e por isso me dá medo, me incomoda, me deixa complexada. (Falou mais do que devia; cala-se, embaraçada, e então continua,com  esforço)  ...  mas  mesmo  assim  eu  gosto  muito  dela.  Especialmente  quando  está congelada. Silêncio. O metrônomo continua batendo.
ILSE (sussurrando): É possível olhar pela janelinha da geladeira?
PETER (voz baixa): Claro, mas não faça barulho. Já estamos a menos dez, e uma emoção repentina poderia ser prejudicial a ela.
ILSE: Oh! É encantadora! Parece falsa... E é... quero dizer, é mesmo da época?
BALDUR (à parte): Não faça perguntas tolas!
ILSE  (à  parte):  Não  é  uma  pergunta  tola.  Queria  saber  quantos  anos  tem: parece tão jovem, e no entanto dizem que é... antiga.
PETER  (que  ouviu):  É  facilmente  explicável,  senhorita.  Patricia  tem  cento  e sessenta  e  três  anos,  dos  quais  vinte  e  três  de  vida  normal  e  cento  e  quarenta  de hibernação. Mas, me desculpem, eu pensei que vocês já soubessem dessa história. A vocês  que  já  sabem,  Maria  e  Robert,  desculpem  a  repetição:  tentarei  explicar rapidamente o caso ao nosso querido casal.
Vocês  devem  saber  que  a  técnica  de  hibernação  foi  iniciada  em  meados  do século XX, basicamente com objetivos clínicos e cirúrgicos. Mas só em 1970 chegou-se  a  congelamentos  realmente  inócuos  e  indolores,  portanto  aptos  a  conservar  por longo  tempo  organismos  complexos.  Com  isso,  um  sonho  se  tornou  realidade: parecia  possível  “enviar”  um  homem  ao  futuro.  Mas  a  que  distância  no  futuro? Existiriam limites? E a que preço? Justamente  para  instituir  um  controle  para  uso  das  gerações  vindouras,  que seríamos nós, foi aberto aqui em Berlim, em 1975, um concurso para voluntários.
BALDUR: E Patricia é um desses?
PETER: Exatamente. Pelo que sabemos de seu registro pessoal, que está na geladeira com ela, trata-se da primeira classificada. Possuía todo os requisitos, coração, pulmões, rins etc., tudo em perfeito estado; um sistema nervoso de piloto espacial; um  caráter  imperturbável  e  decidido,  uma  emotividade  ilimitada,  e  finalmente  uma boa  cultura  e  inteligência.  Não  que  inteligência  e  cultura  sejam  indispensáveis  para suportar  a  hibernação,  mas,  em  igualdade  de  condições,  deram  preferência  a indivíduos de  alto  nível intelectual,  por  evidentes razões  de  prestígio em  relação  a nós e aos nossos sucessores.
BALDUR: Então Patricia dormiu de 1975 até hoje?
PETER: Sim, com breves interrupções. O programa foi acertado entre ela e a comissão, cujo presidente era Hugo Thörl, meu célebre antepassado...
ILSE: Ele é aquele famoso, que a gente estuda na escola?
PETER:  Ele  mesmo,  senhorita,  o  descobridor  do  quarto  princípio  da termodinâmica.  O  programa  previa  um  despertar  de  algumas  horas,  a  cada  ano,sempre em 19 de dezembro, dia do seu aniversário...
ILSE: Que idéia singela!
PETER:  ...  e  também  em  circunstâncias  de  especial  interesse,  como importantes  expedições  planetárias,  crimes  e  processos  célebres,  casamentos  de soberanos ou de musas do cinema, encontros internacionais de beisebol, cataclismos da  natureza  e  fatos  semelhantes:  enfim,  tudo  o  que  mereça  ser  visto  e  preservado para  um  futuro  distante.  Além  disso,  naturalmente,  sempre  que  falta  luz...  e  duas vezes  por  ano  para  exames  médicos.  Pelo  que  consta  dos  registros,  a  soma  dos intervalos de vigília, de 1975 até hoje, é de cerca de trezentos dias.
BALDUR: ... e, me desculpe a pergunta, como Patricia se tornou hóspede de sua casa? Está aqui há muito tempo? PETER  (embaraçado):  Patricia  é...  Patricia  faz  parte,  por  assim  dizer,  da  linha
hereditária da nossa família. É uma longa história, em parte obscura. Sabe, são coisas de outros tempos, já se passou um século e meio... pode-se considerar um milagre que,  com  todas  as  insurreições,  bloqueios,  ocupações,  repressões  e  saques  que ocorreram  em  Berlim,  Patricia  tenha  sido  transmitida  de  pai  para  filho,  ilesa,  sem nunca ter deixado a nossa casa. De certo modo, representa a continuidade familiar: é... um símbolo.
BALDUR: ... mas como...
PETER:  ...  como  Patricia  passou  a  fazer  parte  da  nossa  família?  Bem,  por estranho que pareça, não se encontrou nada escrito sobre esse ponto, há apenas uma tradição oral que Patricia se recusa a confirmar ou a desmentir. Parece que, no início da experiência, Patricia foi alojada na Universidade, precisamente na câmara frigorífica do Instituto de Anatomia, e que por volta de 2000 ela teria tido uma violenta discussão com  o  corpo  acadêmico.  Diz-se  que  aquela  situação  não  lhe  agradava  porque  não preservava a sua intimidade, e também porque ela não queria estar ombro a ombro com  cadáveres  destinados  à  dissecação.  Parece  que  numa  das  vigílias  ela  teria declarado formalmente que ou a colocavam num frigorífico privado, ou recorreria à corte; e que Hugo Thörl, naquela época decano da faculdade, para resolver a questão, teria generosamente se oferecido para hospedá-la.
ILSE:  Que  mulher  estranha!  Mas,  me  desculpem,  ela  já  não  tem  o  bastante? Quem  a  obriga?  Além  disso,  não  deve  ser  muito  divertido  ficar  em  letargia  o  ano inteiro  e  acordar  apenas  por  um  ou  dois  dias,  e  não  quando  se  quer,  mas  quando algum outro decide. Para mim, seria um tédio mortal.
PETER:  Engano  seu,  Ilse.  Ao  contrário,  nunca  houve  uma  existência  mais intensa  que  a  de  Patricia.  A  vida  dela  está  concentrada:  só  contém  o  essencial,  não contém nada que não mereça ser vivido. Quanto ao tempo passado na geladeira, ele passa  para  nós,  não  para  ela.  Não  deixa  marcas  nela,  nem  na  memória  nem  nos tecidos. Ela não envelhece, exceto nas horas de vigília. Do primeiro aniversário na geladeira,  que  foi  o  vigésimo  quarto  dela,  até  hoje,  em  cento  e  quarenta  anos, envelheceu  menos  de  um  ano.  Do  ano  passado  até  agora,  para  ela  transcorreram apenas trinta horas.
BALDUR: Três ou quatro horas no aniversário, e o resto?
PETER:  Depois,  vamos  ver  (calcula  mentalmente),  outras  seis  ou  sete  para  o dentista, para experimentar uma roupa, para ir com Lotte comprar um par de sapatos...
ILSE: É justo. É preciso que ela pelo menos acompanhe a moda.
PETER: ... e já estamos em dez. Seis horas para a estréia de Tristão na Ópera, e são dezesseis. Outras seis para dois exames médicos gerais...
ILSE: Como, ela esteve doente? É  claro, essas mudanças de temperatura não fazem bem a ninguém. Dizer que nos habituamos é mentira!
PETER: Não, não, está muito bem de saúde. São os fisiologistas do Centro de Estudos: regulares como a cobrança das taxas, eles vêm aqui duas vezes por ano, com todos os seus apetrechos, a descongelam, reviram-na de todos os lados, radioscopias, testes psicológicos, eletrocardiogramas, exames de sangue... depois vão embora, sem dizer palavra. Segredo profissional: nenhum comentário.
BALDUR: Mas então não é por interesse científico que vocês a têm em casa? 
PETER (constrangido): Não... não só. Sabe, eu trabalho com outras coisas... Não fui feito para o ambiente acadêmico; o fato é que nos afeiçoamos a Patricia. E ela se afeiçoou a nós, como uma filha. Não nos deixaria por nada.
BALDUR: Mas então por que os intervalos de vigília são tão raros e breves?
PETER:  Isso  é  óbvio:  Patricia  pretende  chegar  em  plena  juventude  aos próximos  séculos,  por  isso  deve  fazer  economia.  Mas  você  terá  a  oportunidade  de ouvir dela mesma essas coisas e outras mais: pronto, chegamos a trinta e cinco graus, está abrindo os olhos. Rápido, querida, abra a porta e corte o invólucro; começou a respirar. Estalo e rangido da porta; barulho de tesouras ou de corta-papéis.
BALDUR: Que invólucro?
PETER: Um invólucro de polietileno, hermético, muito aderente. Serve para reduzir as perdas por evaporação. O metrônomo, que se ouvia ao fundo em todas as pausas, bate cada vez mais forte,  e  então  pára  de  repente.  Soa  três  vezes  uma  sirena,  nitidamente.  Silêncio completo por alguns segundos.
MARGARETA (do outro cômodo): Mamãe! Tia Patricia já acordou? O que ela me trouxe neste ano?
LOTTE: O que você queria que ela te trouxesse? O mesmo cubinho de gelo!
Além disso, é o aniversário dela, não o seu. Agora fique quieta. Durma que já é tarde.Novo  silêncio.  Ouve-se  um  suspiro,  um  bocejo,  um  espirro  escandaloso. Depois, sem transição, Patricia começa a falar.
PATRICIA (voz amaneirada, arrastada, nasal): Boa noite, bom dia. Que horas são? Quanta gente! Que dia é hoje? Que ano?
PETER: 19 de dezembro de 2115. Não lembra? É o seu aniversário. Parabéns, Patricia!
TODOS: Parabéns, Patricia! Vozes de todos, misturadas. Ouvem-se pedaços de frases: “Como é bonita!”
“Senhorita, me perdoe, gostaria de fazer algumas perguntas...”
“Depois, depois! Imaginem como está cansada!”
“Sonha quando está na geladeira? Que tipo de sonho?”
“Queria sua opinião sobre a...”

ILSE: Será que conheceu Napoleão e Hitler?
BALDUR: Claro que não! O que você está dizendo? Foram dois séculos antes!
LOTTE (interrompe com decisão): Com licença, por favor. Deixem-me passar, é preciso que alguém pense nas coisas práticas. Patricia talvez necessite de algo... (para Patricia)  uma  xícara  de  chá  quente?  Ou  talvez  algo  mais  nutritivo?  Uma  pequena bisteca? Precisa trocar de roupa, tomar um ar?
PATRICIA: Chá, obrigada. Como você é amável, Lotte! Não, por enquanto não preciso de mais nada; você sabe, o descongelamento me deixa o estômago sempre embrulhado; quanto à bisteca, talvez mais tarde. Mas pequena, certo? Oh, Peter, como vai? Como vai sua ciática? Quais as novidades? Terminou a conferência de cúpula? Já começou a fazer frio? Ah, detesto o inverno, sou muito sujeita a resfriados... E você, Lotte? Parece ótima, até mais gordinha, talvez...
MARIA: ... É verdade, os anos passam para todos...
BALDUR:  Passam  para  quase  todos.  Peter,  me  permita,  ouvi  tanto  falar  de Patricia, esperei tanto esse encontro, que agora gostaria... (Para  Patricia)  Senhorita, perdoe  o  meu  entusiasmo,  sei  que  o  seu  tempo  é  curto,  mas  gostaria  que  me descrevesse o nosso mundo visto com os seus olhos, que me falasse do seu passado, do seu século que nos deu tanto, de suas intenções para o futuro, que...
PATRICIA (com segurança): Não há nada de extraordinário, a gente se acostuma logo. Veja aqui o sr. Thörl, por exemplo, cinqüentão (maldosamente),  cabelos  ralos, barriguinha,  pequenas  dores  de  vez  em  quando.  Pois  bem,  para  mim,  dois  meses atrás, ele tinha vinte anos, escrevia poesias, estava para partir como voluntário com os Ulanos.  Há  três  meses,  tinha  dez  e  me  chamava  de  tia  Patricia,  chorava  quando  me congelavam  e  queria  vir  comigo  para  a  geladeira.  Não  é  verdade,  Peter?  Oh,  me desculpe.
Cinco  meses  atrás,  ele  não  só  não  havia  nascido,  mas  não  estava  nem remotamente nos planos; havia o pai, o coronel, mas eu falo de quando ele era apenas tenente,  estava  na  Quarta  Legião  de  Mercenários,  e  a  cada  despertar  ele  tinha  uma condecoração  a  mais  e  uns  cabelos  a  menos.  Ele  me  cortejava,  daquele  jeito engraçado que se usava na época: cortejou-me durante oito degelos... pode-se dizer que os Thörl têm isso no sangue, e nesse aspecto garanto que todos se assemelham.
Não têm... como dizer?... não têm uma idéia muito séria da relação de tutela... (a voz de Patricia prossegue em diminuendo) imagine que até o Ancestral, o Patriarca... Sobrepõe-se nítida e próxima a voz de Lotte, dirigida ao público.
LOTTE:  Vocês  ouviram?  Essa  moça  é  assim.  Não  tem...  não  tem  papas  na língua.  É  verdade  que  engordei,  mas  não  estou  numa  geladeira.  Ela  não,  ela  não engorda, é eterna, incorruptível como o amianto, o diamante, o ouro. Mas gosta dos homens, especialmente dos maridos alheios. É uma arrogante eterna, uma sedutora incorruptível. Então apelo aos senhores: não tenho razões para detestá-la? (Suspiro)  ... e ela agrada aos homens, mesmo com a venerável idade: isso é o pior. Vocês sabem como são os homens, Thörl ou não Thörl, e os intelectuais mais que os outros: dois suspiros, duas olhadas de um certo modo, duas lembranças de infância, e a armadilha dispara. Mais tarde, quem tem problemas é ela, claro — depois de um mês ou dois, acorda em meio a corações moles e meio passados... Não, não pensem que eu seja tão cega ou tão tola: também me dei conta de que, desta vez, ela mudou de tom com o meu  marido,  se  tornou  mordaz,  cortante.  Compreensível:  há  outro  homem  no horizonte.  Mas  vocês  não  assistiram  às  outras  vezes  em  que  despertou.  Eu  devia arrancar-lhe  o  couro!  De  resto...  nunca  consegui  ter  provas,  dar  um  flagrante,  mas vocês acham que tudo era feito às claras entre a jovem e o “tutor”? Em outras palavras (com força), acham que todos os descongelamentos foram regularmente registrados no livro pessoal? Eu não acho. Não tenho muita certeza disso. (Pausa.  Conversa  confusa, com barulho ao fundo.) Mas desta vez há novidades, como vocês mesmos notaram. É simples: há outro homem em vista, um homem mais jovem. Essa garotinha gosta de carne fresca! Basta ouvi-la: ela não demonstra saber o que quer? (Vozes.) Oh, não achei que já estivéssemos nesse ponto.
Das vozes do fundo emergem as falas de Baldur e de Patricia.
BALDUR:  ...  uma  impressão  que  nunca  experimentei.  Nunca  imaginei  que fosse  possível  encontrar  numa  mesma  pessoa  o  fascínio  da  eternidade  e  o  da juventude. Sinto-me como se estivesse diante das pirâmides, e no entanto a senhora étão jovem e tão bela!
PATRICIA: Sim, senhor... Baldur, é assim que se chama, não é? Sim, Baldur. Mas os meus dons são três, e não dois. A eternidade, a juventude e a solidão. E este último é o preço a pagar pela audácia que tive.
BALDUR: Mas que experiência admirável! Passar voando quando os outros se arrastam pela vida, poder comparar p
essoalmente costumes, acontecimentos e heróis à  distância  de  décadas  e  séculos!  Qual historiador não  a  invejaria?  E  eu,  que  me proclamava cultor da história! (Com ímpeto repentino) Deixe-me ler o seu diário. PATRICIA:  Como  sabe...  Quero  dizer,  o  que  o  faz  pensar  que  eu  tenha  um diário?
BALDUR: Então ele existe! Adivinhei!
PATRICIA:  Sim,  tenho.  Faz  parte  do  programa,  mas  ninguém  sabe,  nem mesmo  Thörl.  E  ninguém  pode  lê-lo:  está  cifrado,  e  isso  também  faz  parte  do programa.
BALDUR: Se ninguém pode ler, serve pra quê?
PATRICIA: Para mim. Servirá mais tarde.
BALDUR: Mais tarde quando?
PATRICIA:  Depois.  Quando  eu  tiver  chegado.  Então  espero  publicá-lo:  acho que  não  terei  dificuldade  em  encontrar  um  editor,  porque  é  um  diário  íntimo,  um gênero que sempre vende. (Com voz sonhadora.) Penso em dedicar-me ao jornalismo,
sabe? E publicar os diários íntimos de todos os poderosos da Terra de minha época, Churchill, Stálin etc. Dá para ganhar um monte de dinheiro.
BALDUR: Mas como a senhora tem esses diários?
PATRICIA:  Eu  não  os  tenho.  Escreverei  eu  mesma.  Baseada  em  episódios autênticos, claro.
Pausa.
BALDUR: Patricia! (Outra pausa). Vamos ficar juntos!
PATRICIA (pensa um pouco; depois, muito friamente): Em termos abstratos, não seria  uma  má  idéia.  Mas  não  pense  que  basta  entrar  na  geladeira:  é  preciso  tomar injeções, seguir o curso preparatório... Não é tão simples. Além disso, nem todos têm um  organismo  apto...  Sim,  seria  simpático  ter  um  companheiro  de  viagem  como  o senhor, tão vivo, tão apaixonado, com um temperamento tão rico... Mas o senhor não está noivo?
BALDUR: Noivo? Estava.
PATRICIA: Até quando?
BALDUR: Até meia hora atrás: mas agora eu a encontrei, e tudo mudou.
PATRICIA:  O  senhor  é  um  conquistador,  um  homem  perigoso.  (A  voz  de Patricia  muda  bruscamente,  não  é  mais  lamentosa  e  lânguida,  mas  nítida,  enérgica,cortante.) De qualquer modo, se as coisas estão como o senhor diz, poderia nascer um acordo interessante.
BALDUR: Patricia! Por que adiar? Vamos partir: fuja comigo. Não no futuro: no presente.
PATRICIA (friamente): Estava pensando justamente nisso. Mas quando?
BALDUR: Agora, imediatamente. Atravessamos a sala e vamos.
PATRICIA: Nonsense. Logo todos estariam atrás de nós, e ele à frente. Veja: já está com suspeitas.
BALDUR: Então quando?
PATRICIA: Esta noite. Ouça bem. À meia-noite todos vão embora, e eles me recongelam e me recolocam na naftalina. É um processo mais rápido que o despertar, parecido  com  o  dos  anfíbios,  o  senhor  sabe,  é  preciso  sair  da  água  devagar,  mas  a imersão  pode  ser  rápida.  Eles  me  metem  na  geladeira  e  ligam  o  compressor  sem muita  cerimônia:  mas  nas  primeiras  horas  eu  me  mantenho  bem  macia,  posso facilmente retornar à vida ativa.
BALDUR: E então?
PATRICIA: Então é simples. O senhor vai com os outros, acompanha a sua... aquela  garota  até  a  casa;  depois  volta  aqui,  entra  no  jardim,  passa  pela  janela  da cozinha...
BALDUR:  ...  e  pronto!  Mais  duas  horas,  duas  horas  e  o  mundo  será  nosso! Mas,  me  diga,  Patricia,  não  haverá  arrependimentos?  Não  vai  lamentar  ter interrompido a sua corrida para os séculos futuros por minha causa?
PATRICIA:  Veja,  meu  jovem,  nós  teremos  tempo  bastante  para  falar  dessas belas  coisas  se  o  plano  der  certo.  Mas  antes  é  preciso  que  aconteça.  Olhe,  já  estão indo; volte ao seu lugar, despeça-se civilizadamente e tente não fazer bobagens. Sabe, não é por nada, mas eu detestaria perder a ocasião.

Vozes  dos  convidados  se  despedindo,  barulho  de  cadeiras  sendo  arrastadas.
Pedaços de frases:
“Até o próximo ano!”
“Boa noite, se posso dizer assim...”
“Vamos, Robert, não achei que fosse tão tarde.”
“Baldur, vamos, você terá a honra de me acompanhar.”
Silêncio. Depois a voz de Lotte, dirigida ao público.

LOTTE: ... e assim foram todos embora. Peter e eu ficamos sós, com Patricia, o que nunca é agradável para nenhum de nós três. Não digo por causa da antipatia que descrevi antes, de modo talvez um tanto impulsivo; não: é uma situação objetivamente desagradável, fria, falsa, cheia de constrangimento para todos. Falamos um pouco de uma coisa ou outra, depois nos despedimos, e Peter recolocou Patricia na geladeira.  Os mesmos ruídos do descongelamento, mas invertidos e acelerados. Suspiro, bocejo. Rápido fechamento do invólucro. Metrônomo acionado, depois a bomba, os chiados  etc.  O  metrônomo  continua  em  movimento,  cujo  ritmo  gradualmente  se confunde  com  o  som  mais  lento  de  um  relógio  de  pêndulo.  Soa  uma  hora,  uma  e meia, duas. Ouve-se o rumor de um carro que se aproxima, pára, a porta bate. Um cachorro  late  ao  longe.  Passos  no  jardim.  Uma  janela  se  abre.  Passos  no  piso  de madeira, que range cada vez mais próximo. Abre-se a porta da geladeira. 
BALDUR (sussurrando): Patricia, sou eu!
PATRICIA (voz confusa e abafada): Crmdtimrs lm mvolmcrm!
BALDUR: Coooooomo?
PATRICIA (mais nitidamente): Corte o invólucro!

Ruído do corte.

BALDUR: Pronto. E agora? O que devo fazer? Por favor, me perdoe, mas não tenho prática, sabe, é a primeira vez que me acontece...
PATRICIA: Oh, o principal já foi feito, agora eu me viro sozinha. Só me ajude a sair daqui.

Passos. “Devagar”, “Psss”, “Por este lado”. Janela. Passos no jardim. A porta do carro. Baldur liga o motor.

BALDUR:  Saímos,  Patricia.  Saímos  do  gelo,  saímos  do  pesadelo.  Parece  que estou sonhando: há duas horas estou vivendo num sonho. Tenho medo de acordar.
PATRICIA (friamente): Levou sua noiva para casa?
BALDUR: Quem, Ilse? Acompanhei-a, sim. Inclusive me despedi dela.
PATRICIA: Como assim, se despediu? Definitivamente?
BALDUR: Sim, nem foi tão difícil quanto eu pensava, só uma rápida cena. Ela nem chorou.

Pausa, o carro está em movimento.
PATRICIA: Meu jovem, não me leve a mal. Acho que chegou o momento de uma explicação. Por favor, me entenda: eu precisava sair de lá de qualquer jeito.
BALDUR: ... e se tratava apenas disso? Sair?

PATRICIA: Só isso. Sair do frigorífico e sair da casa Thörl. Baldur, sinto que lhe devo uma confissão.
BALDUR: Uma confissão é pouco.
PATRICIA: É tudo o que eu posso lhe dar; e não é uma bela confissão. Estou realmente cansada: gelo e degelo, gelo e degelo, depois de muito tempo isso cansa.Além disso, há outra coisa.
BALDUR: Mais outra?
PATRICIA:  Sim,  mais  outra.  As  visitas  dele,  de  noite.  A  trinta  e  três  graus, ainda morna, quando estava totalmente indefesa. E, como eu ficava calada — claro! —, ele talvez imaginasse...
BALDUR: Minha querida, como deve ter sido sofrido!
PATRICIA: Uma verdadeira tortura, não pode imaginar. Um tédio indizível.

Barulho do carro, que se afasta.

LOTTE: ... E assim termina esta história. Eu tinha percebido algo, e naquela noite ouvi barulhos estranhos. Mas fiquei calada: por que deveria dar o alarme?
Acho que assim será melhor para  todos. Baldur, coitadinho, me contou tudo: parece que Patricia, além de tudo, ainda lhe pediu dinheiro; queria ir não sei aonde, reencontrar  um  colega  que  está  nos  Estados  Unidos,  também  na  geladeira, obviamente.  Quanto  a  ele,  Baldur,  se  reatará  o  noivado  com  Ilse  ou  não,  isso  não importa  a  ninguém,  nem  mesmo  a  Ilse.  A  geladeira  foi  vendida.  Sobre  Peter, veremos.

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Sem enfeite nenhum - Adélia Prado

Resultado de imagem para Sem enfeite nenhum adelia prado livroA mãe era desse jeito: só ia em missa das cinco, por causa de os gatos no escuro serem pardos. Cinema, só uma vez, quando passou os Milagres do padre Antônio em Urucânia. Desde aí, falava sempre, excitada nos olhos, apressada no cacoete dela de enrolar um cacho de cabelo: se eu fosse lá, quem sabe?

Sofria palpitação e tonteira, lembro dela caindo na beira do tanque, o vulto dobrado em arco, gente afobada em volta, cheiro de alcanfor.

Quando comecei a empinar as blusas com o estufadinho dos peitos, o pai  chegou pra almoçar, estudando terreno, e anunciou com a voz que fazia nessas ocasiões, meio saliente: companheiro meu tá vendendo um relogim que é uma gracinha, pulseirinha de crom', danado de bom pra do Carmo. Ela foi logo emendando: tristeza, relógio de pulso e vestido de bolér. Nem bolero ela falou direito de tanta antipatia. Foi água na fervura minha e do pai.

Vivia repetindo que era graça de Deus se a gente fosse tudo pra um convento e várias vezes por dia era isto: meu Jesus, misericórdia... A senhora tá triste, mãe? eu falava. Não, tou só pedindo a Deus pra ter dó de nós.

Tinha muito medo da morte repentina e pra se livrar dela, fazia as nove primeiras sextas-feiras, emendadas. De defunto não tinha medo, só de gente viva, conforme dizia. Agora, da perdição eterna, tinha horror, pra ela e pros outros.

Quando a Ricardina começou a morrer, no Beco atrás da nossa casa,   ela me chamou com a voz alterada: vai lá, a Ricardina tá morrendo, coitada,  que Deus perdoe ela, corre lá, quem sabe ainda dá tempo de chamar o padre, falava de arranco, querendo chorar, apavorada: que Deus perdoe ela, ficou falando sem coragem de aluir do lugar.

Mas a Ricardina era de impressionar mesmo, imagina que falou pra mãe, uma vez, que não podia ver nem cueca de homem que ela ficava doida.  Foi mais por isso que ela ficou daquele jeito, rezando pra salvação da alma da Ricardina.

Era a mulher mais difícil a mãe. Difícil, assim, de ser agradada. Gostava que eu tirasse só dez e primeiro lugar. Pra essas coisas não poupava, era pasta de primeira, caixa com doze lápis e uniforme mandado plissar. Acho mesmo que meia razão ela teve no caso do relógio, luxo bobo, pra quem só tinha um vestido de sair.

Rodeava a gente estudar e um dia falou abrupto, por causa do esforço de vencer a vergonha: me dá seus lápis de cor. Foi falando e colorindo laranjado, uma rosa geométrica: cê põe muita força no lápis, se eu tivesse seu tempo, ninguém na escola me passava, inteligência não é estudar, por exemplo falar você em vez de cê, é   tão mais bonito, é só  acostumar. Quando o coração da gente dispara e a gente fala cortado, era desse jeito que tava a voz da mãe.

Achava estudo a coisa mais fina e inteligente era mesmo, demais até, pensava com a maior rapidez. Gostava de ler de noite, em voz alta, com tia Santa, os livros da Pia Biblioteca, e de um não esqueci, pois ela insistia com gosto no titulo dele, em latim: Máguina pecatrís. Falava era antusiasmo e nunca tive coragem de corrigir, porque toda vez que tava muito alegre, feito naquela hora, desenhando, feito no dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou: coitado, até essa hora no serviço pesado.

Não estava gostando nem um pouquinho do desenho, mas nem que eu falava. Com tanta satisfação ela passava o lápis, que eu fiquei foi aflita, como sempre que uma coisa boa acontecia.

Bom também era ver ela passando creme Marsílea no rosto e Antissardina n° 3, se sacudindo de rir depois, com a cara toda empolada. Sua mãe é bonita, me falaram na escola. E era mesmo, o olho meio verde.

Tinha um vestido de seda branco e preto e um mantô cinzentado que ela gostava demais.

Dia ruim foi quando o pai entestou de dar um par de sapato pra ela. Foi três vezes na loja e ela botando defeito, achando o modelo jeca, a cor regalada, achando aquilo uma desgraça e que o pai tinha era umas bobagens. Foi até ele enfezar e arrebentar com o trem, de tanta raiva e mágoa.

Mas sapato é sapato, pior foi com o crucifixo. O pai, voltando de cumprir promessa em Congonhas do Campo, trouxe de presente pra ela um crucifixo torneadinho, o cordão de pendurar, com bambolim nas pontas, a maior gracinha. Ela desembrulhou e falou assim: bonito, mas eu preferia mais se fosse uma cruz simples, sem enfeite nenhum.

Morreu sem fazer trinta e cinco anos, da morte mais agoniada, encomendando com a maior coragem: a oração dos agonizantes, reza aí pra mim, gente.
Fiquei hipnotizada, olhando a mãe. Já no caixão, tinha a cara severa de quem sente dor forte, igualzinho no dia que o João Antônio nasceu. Entrei no quarto querendo festejar e falei sem graça: a cara da senhora, parece que tá com raiva, mãe.

O Senhor te abençoe e te guarde,
Volva a ti o Seu Rosto e se compadeça de ti,
O Senhor te dê a Paz.

Esta é a bênção de São Francisco, que foi abrandando o rosto dela, descansando, descansando, até como ficou, quase entusiasmado.

Era raiva não. Era marca de dor.

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

O rapa-carniça - Robert Louis Stevenson

Resultado de imagem para O rappa-carniça Robert Louis StevensonTodas as noites do ano, éramos quatro a ocupar o pequeno reservado do George, em Debenham – o agente funerário, o patrão, Fettes e eu. Às vezes havia mais gente; mas, viesse o que viesse, chuva, neve ou geada, nós quatro não falhávamos, cada qual plantado em sua poltrona de sempre. Fettes era um velho escocês bêbado, obviamente homem de boa formação e de algumas posses também, uma vez que vivia em ócio. Chegara a Debenham anos antes, ainda jovem, e pela mera permanência prolongada se tornara cidadão adotivo. Seu manto de chamalote azul era uma das relíquias locais, ao lado da‚ flecha da igreja. Seu lugar no reservado da estalagem, sua ausência da igreja e seus vícios antigos, crapulosos e indignos eram vistos com naturalidade em Debenham. Tinha algumas opiniões radicais imprecisas e algumas infi delidades passageiras, que de tanto em tanto manifestava e pontuava com murros trêmulos na mesa. Bebia rum – cinco copos de lei, toda noite; e, em sua visita cotidiana ao George, permanecia quase o tempo inteiro sentado, o copo na mão direita, num estado de melancólica saturação alcoólica. 
Nós o chamávamos Doutor, pois dizia-se que tinha algum conhecimento médico e que, em ocasiões de apuro, tratara de uma fratura ou pusera no lugar um membro deslocado; mas, afora esses parcos detalhes, não sabíamos nada de seu caráter ou de sua vida pregressa. Certa noite escura de inverno – o relógio dera nove horas pouco antes que o patrão se juntasse a nós –, chegou ao George um homem enfermo, um graúdo proprietário de terras da região, vitimado por uma apoplexia a caminho do Parlamento; e o importantíssimo médico londrino do importante personagem foi convocado por telégrafo para a cabeceira do doente. Era a primeira vez que coisa do gênero acontecia em Debenham, pois a ferrovia só recentemente fora inaugurada, e todos nós ficamos devidamente comovidos com o fato.
“Ele chegou”, disse o patrão, abastecido e aceso o cachimbo.
“Ele?”, disse eu. “Quem? O médico?”
“Ele mesmo”, respondeu nosso an trião.
“Como se chama?”
“Doutor Macfarlane”, disse o patrão. Fettes já ia avançado no terceiro copo e estava tonto, atordoado, ora cabeceando, ora olhando xamente à volta; mas a essa última palavra pareceu despertar e repetiu duas vezes o nome “Macfarlane”, baixinho na primeira vez mas com súbita emoção na segunda.
“Exato”, disse o patrão, “é esse o nome. Doutor Wolfe Macfarlane.”
Fettes ficou sóbrio de um só golpe; os olhos despertaram, a voz soou clara, alta e fi rme, as palavras enérgicas e graves. Todos nos espantamos com a transformação, como se um homem tivesse se erguido do meio dos mortos. 
“Desculpem-me”, disse ele, “acho que não estava prestando muita atenção na conversa. Quem é esse Wolfe Macfarlane?” E, depois de ouvir o patrão até o fi m, acrescentou: “Não pode ser, não pode ser… Mas mesmo assim eu gostaria de encontrá-lo frente a frente”.
“Você o conhece, Doutor?”, perguntou o agente funerário, boquiaberto.
“Deus me livre!”, foi a resposta. “Mas esse nome é incomum; seria estranho existirem duas pessoas com o mesmo nome. Diga, patrão, ele é velho?”
“Bem”, disse o dono da estalagem, “jovem ele não é, e o cabelo é branco; mas parece mais jovem que você.”
“Mas é mais velho, vários anos mais velho. Além disso”, continuou, com um murro na mesa, “o que vocês veem no meu rosto é o rum – o rum e o pecado. Talvez o sujeito tenha consciência leve e boa digestão. Consciência! Logo eu, falando. Para vocês, sou um velho e bom cristão, um homem direito, não é mesmo? Nada disso, não sou; nunca fraquejei. Talvez Voltaire, 63  na minha pele, tivesse fraquejado; mas a inteligência”, disse ele, tamborilando na cabeça calva, “a inteligência era clara e alerta, eu via as coisas e não fazia ilações.”
“Se você conhece esse médico”, arrisquei-me a dizer, depois de uma pausa um tanto penosa, “devo concluir que não partilha da boa opinião do nosso patrão”. Fettes ignorou minhas palavras.
“É”, disse, com súbita determinação, “preciso encontrá-lo frente a frente”. Depois de outra pausa, uma porta se fechou com estrépito no andar de cima e ouvimos passos na escada. “É o doutor”, exclamou o patrão. “Depressa, se quiser alcançá-lo.”
Não mais que dois passos separavam o reservado da porta da velha estalagem; a larga escadaria de carvalho dava quase na rua; entre a soleira e o último lance de degraus havia espaço para um tapete turco e nada mais; mas todas as noites aquele pequeno espaço era brilhantemente iluminado, não apenas pela luz da escada e pelo grande lampião pendurado debaixo da tabuleta como também pelo reflexo cálido da vidraça do bar. Era assim, luminosamente, que a estalagem se anunciava aos que passavam pela rua fria. Fettes avançou até ali sem vacilar e nós, logo atrás, vimos como os dois homens se encontraram frente a frente, como dissera um deles. O dr. Macfarlane era atento e vigoroso. Seu cabelo branco realçava feições pálidas e serenas, embora intensas. Estava ricamente vestido, com a melhor casimira e o linho mais branco, uma pesada corrente de ouro para o relógio e botões de colarinho e óculos do mesmo material precioso. Envergava uma gravata branca de laço amplo com bolinhas lilases e trazia no braço um confortável capote de pele. Não havia dúvida de que estava em harmonia com sua idade, transpirando riqueza e circunstância; e era um contraste surpreendente ver nosso companheiro beberrão – calvo, sujo, perebento, enfi ado em seu velho manto de chamalote – confrontá-lo ao pé da escada. “Macfarlane!”, disse ele, num volume um tanto exagerado, mais como um arauto do que como um amigo.
O doutor figurão estacou no quarto degrau como se a familiaridade da invocação surpreendesse e mesmo chocasse sua dignidade.
“Toddy Macfarlane!”, repetiu Fettes.
O homem de Londres quase cambaleou. Por um átimo de segundo fi tou o personagem diante dele, olhou para trás numa espécie de susto, depois disse, num sussurro sobressaltado:
“Fettes! Você?!”
“Isso! Eu mesmo!”, disse o outro. “Achou que eu também tivesse morrido? Não é tão fácil livrar-se dos conhecidos.”
“Fale baixo!”, exclamou o médico. “Este encontro assim inesperado… Logo se vê que o tempo passou. Confesso que no primeiro momento mal reconheci você; mas estou radiante, radiante com esta oportunidade. Por enquanto vai ser apenas olá e até logo, minha charrete está à espera e não posso perder o trem; mas você… vejamos… me dê seu endereço, que não demora terá notícias minhas. Temos que fazer alguma coisa por você, Fettes. Temo que esteja passando difi culdade; mas vamos cuidar disso, já que somos bons companheiros, como gostávamos de cantar em nossos jantares de antigamente.”
“Dinheiro!”,  gritou  Fettes.  “Dinheiro  de  você!  O dinheiro que você me deu continua no lugar onde o joguei, tomando chuva.”
O dr. Macfarlane recuperara até certo ponto o ar soberano e confi ante, mas a veemência incomum da recusa fez com que recaísse no embaraço inicial.Um esgar 64  vil, horroroso, dominou e abandonou sua fi sionomia quase venerável.
“Meu caro amigo”, disse, “você é que sabe; a última coisa que eu desejo é ofendê-lo. Jamais me imporia a ninguém. De todo modo, vou lhe dar meu endereço…”
“Não quero endereço nenhum, não quero saber qual é o teto que cobre a sua cabeça”, interrompeu o outro. 
“Alguém falou seu nome; temi que fosse você; quis saber se, a final de contas, existe um Deus; agora sei que não há. 
Fora daqui!” Fettes continuava no meio do tapete, entre a escada e a porta da rua; e o grande médico de Londres, para escapar dali, seria forçado a dar um passo para o lado. Era evidente que ele hesitava diante da ideia de tamanha humilhação.  
Branco que estava, via-se uma cintilação perigosa em seus óculos; mas enquanto ele permanecia imóvel, ainda indeciso, percebeu que o condutor de sua charrete espiava da rua a cena incomum e ao mesmo tempo deu por nossa pequena plateia do reservado apinhada no canto do bar. A presença de tantas testemunhas decidiu-o na hora a fugir. Esgueirando-se rente aos lambris, disparou como uma serpente na direção da porta. Mas suas agruras ainda não haviam chegado ao m, pois, quando já passava por Fettes, este segurou-o pelo braço e pronunciou as seguintes palavras, num sussurro dolorosamente nítido: “Você voltou a ver aquilo?”
O abastado doutor de Londres soltou um grito lancinante, estrangulado; empurrou seu inquisidor para trás e, cobrindo a cabeça com as mãos, fugiu pela porta como um ladrão desmascarado. Antes que algum de nós pensasse em intervir, a charrete já chacoalhava a caminho da estação. Como um sonho, a cena se encerrou, mas o sonho deixara provas e rastros de sua passagem. No dia seguinte a criada encontrou os belos óculos de ouro quebrados sobre a soleira, e naquela mesma noite todos nós fi camos ali, boquiabertos, junto à janela do bar, e Fettes, junto de nós, tinha um aspecto sóbrio, pálido e resoluto.
“Deus nos proteja, Fettes!”, disse o patrão, o primeiro a recobrar o tino de costume. “O que diabos foi isso? Que coisas estranhas são essas que você disse?”
Fettes voltou-se para nós; tou-nos um por um. “Tentem fi car de bico fechado”, disse. “É um perigo encontrar esse Macfarlane; os que zeram isso se arrependeram tarde demais.”
Em seguida, sem nem mesmo terminar o terceiro copo e muito menos esperar pelos outros dois, desejou-nos boa noite e submergiu na escuridão, passando sob o lampião da estalagem.
Nós três voltamos para nossos lugares no reservado, com a grande lareira acesa e quatro velas reluzentes; e, recapitulando o acontecido, nosso arrepio inicial de surpresa transformou-se em clarão de curiosidade. Ficamos até tarde; que eu me lembre, foi nosso serão mais prolongado no velho George. Quando nos separamos, cada um de nós tinha uma teoria que estava preparado para comprovar; e nosso único objetivo nesta vida era desvendar o passado de nosso pobre companheiro e pilhar o segredo que ele partilhava com o grande médico de Londres. 
Sem querer me vangloriar, acho que, em se tratando de desencavar histórias, eu era mais competente do que meus camaradas do George; e possivelmente hoje em dia não haja um só vivente capaz de narrar-lhes os fatos abomináveis e doentios que se seguem.
Quando jovem, Fettes estudara medicina na faculdade de Edimburgo. Possuía um talento peculiar, aquele talento que recolhe depressa o que ouve para logo tirar proveito pessoal. Estudava pouco em casa, mas era respeitoso, aplicado e inteligente na presença dos mestres. Estes logo o identi caram como um aluno que ouvia com atenção e se lembrava do que ouvia; com efeito, por estranho que tivesse me parecido quando fi quei sabendo disso, na época ele era um aluno querido, muito satisfeito de si. 
Havia, naquele tempo, certo professor associado de anatomia, que designarei aqui pela letra K. Seu nome veio a ser conhecido, muito conhecido. Esse homem se esgueirava, disfarçado, pelas ruas de Edimburgo enquanto a multidão que aplaudira a execução de Burke 65  clamava pelo sangue de seu empregador. Mas o sr. K. estava então no auge da moda: gozava de uma popularidade em parte decorrente de seu grande talento e de seu preparo, em parte da incapacidade de seu rival, o professor efetivo. Os estudantes, pelo menos, rezavam por sua cartilha, e Fettes – como de resto seus colegas – julgou assentadas as bases de sua carreira ao cair nas graças daquele homem meteoricamente famoso. O sr. K era um bon vivant e um professor experiente; sabia apreciar tanto uma alusão dissimulada quanto uma preparação meticulosa. Em ambos os quesitos, Fettes gozava de sua merecida atenção, e já em seu segundo ano de estudos conquistara a posição mais ou menos fi xa de monitor, ou segundo-assistente da disciplina.
Nessa condição, a responsabilidade pelo an fiteatro e pelas aulas de anatomia recaía particularmente sobre seus ombros. Era ele quem respondia pela limpeza dos recintos e pela conduta dos demais estudantes, e fazia parte de seus deveres providenciar, receber e distribuir as diversas peças a analisar. Foi em atenção a esta última tarefa – muito delicada à época – que o sr. K. o alojara na mesma ruela e, por fi m, no mesmo edifício das salas de dissecção. Ali, depois de uma noite de prazeres turbulentos, a mão ainda trêmula, a vista ainda embaçada e confusa, era tirado da cama nas horas escuras que precedem a aurora invernal pelos comerciantes encardidos e desesperados que supriam a 
bancada para as aulas práticas. Abria a porta para aqueles homens, infames desde então em todo o país. Ajudava-os com sua carga trágica, pagava-lhes o preço sórdido e, quando partiam, cava sozinho com aqueles restos inamistosos de seres humanos. Dava as costas a tal cenário para mais uma hora ou duas de sono que o restaurassem dos abusos da noite e o refrescassem para as lidas do dia.
Poucos rapazes poderiam ter sido mais insensíveis às impressões de uma vida passada assim, entre os emblemas da mortalidade. Seu espírito era impermeável a toda e qualquer ideia generalizante. Era incapaz de interessar-se pela desgraça ou pela sorte alheia, escravo que era dos próprios desejos e ambições mesquinhas. Frio, inconsequente e egoísta até o m, tinha aquele mínimo de prudência, inadequadamente denominado moralidade, que mantém um homem longe da embriaguez inconveniente ou do furto sujeito a punição. Almejava, ademais, algum grau de consideração por parte de seus mestres e colegas e não estava inclinado a fracassar conspicuamente nos aspectos externos da existência. Assim, deu-se o prazer de conquistar alguma distinção nos estudos e, dia após dia, prestava serviços impecáveis como assistente de seu empregador, o sr. K. Compensava o dia de trabalho com noites ensurdecedoras e inescrupulosas de diversão; e, todas as contas feitas, o órgão que denominava sua “consciência” dava-se por satisfeito.
O suprimento de peças era um perpétuo problema para ele e para seu patrão. Na sala de aula vasta e industriosa, a matéria-prima dos anatomistas estava sempre a ponto de se esgotar; e o comércio que isso tornava necessário não apenas era desagradável em si, como ameaçava todos os envolvidos com sérias represálias. A política do sr. K. consistia em não fazer perguntas durante as tratativas. “Eles trazem o corpo, nós pagamos o preço”, era o que costumava dizer, sublinhando a aliteração – quid pro quo.
 E,continuava, em tom um tanto profano, dizendo à assistência: “Não façam perguntas, por amor à consciência”. Não se supunha que as peças fossem providenciadas mediante o crime de assassinato. Se a ideia lhe fosse comunicada nesses termos, ele recuaria horrorizado; mas a leviandade com que falava sobre assunto tão grave era, por si só, uma ofensa às boas maneiras e uma tentação para os homens com quem lidava. Fettes, por exemplo, percebera com frequência o estranho frescor dos corpos. Repetidas vezes, atentara para o aspecto velhaco e abominável dos patifes que vinham procurá-lo antes do amanhecer; e, de si para si, juntando uma coisa à outra, talvez atribuísse um sentido excessivamente imoral e categórico aos conselhos descuidados do patrão. Em suma, considerava que seu dever tinha três rami cações: aceitar o que viesse, pagar o preço e desviar os olhos de qualquer indício de crime. Numa certa manhã de novembro essa política de silêncio foi duramente posta à prova. Fettes passara a noite em claro, vítima de uma dor de dente lancinante, andando de um lado para outro no quarto como uma fera enjaulada ou jogando-se enfurecido na cama para fi nalmente cair naquele sono profundo e incômodo que tantas vezes se segue a uma noite de dor, quando foi despertado pela terceira ou quarta repetição irritada do sinal convencionado. 
Havia um luar tênue e brilhante: fazia um frio cortante, com vento e geada; a cidade ainda não acordara, mas uma agitação indefi nível já antecipava o alarido e o trabalho do dia. Os espectros haviam chegado mais tarde que de hábito e pareciam especialmente ansiosos por partir. Fettes, bêbado de sono, iluminou as escadas que levavam ao primeiro andar. Como em sonhos, ouvia vozes resmungando em irlandês; e, enquanto esvaziavam o saco de sua triste mercadoria, dormitava com o ombro apoiado na parede; foi obrigado a sacudir-se para encontrar o dinheiro dos homens. Enquanto fazia isso, seus olhos deram com o rosto morto. Sobressaltou-se; deu dois passos adiante, de vela erguida. 
“Deus Todo-Poderoso!”, exclamou. “É a Jane Galbraith!” Os homens nada responderam, mas se aproximaram da porta arrastando os pés.
“Conheço essa moça, tenho certeza”, continuou Fennes. “Ontem mesmo estava viva e saudável. É impossível que esteja morta; é impossível que vocês tenham conseguido seu corpo honestamente.” 
“Cavalheiro, com certeza o senhor está totalmente enganado”, disse um dos homens. Mas o outro encarou Fettes com olhar sombrio e exigiu o dinheiro na hora. Era impossível ignorar a ameaça ou exagerar o perigo. O  rapaz fraquejou. Gaguejou um pedido de desculpas, contou o dinheiro e assistiu à partida de seus odiosos visitantes. Tão logo haviam partido, correu a confi rmar suas dúvidas. Por uma dúzia de sinais inequívocos, identi ficou a jovem com quem se divertira um dia antes. Horrorizado, deu com marcas no corpo dela que bem poderiam signifi car o uso de violência. Tomado de pânico, refugiou-se em seu quarto. Ali, refletiu longamente sobre sua descoberta; mais calmo, deliberou sobre o sentido das instruções do sr. K. e o perigo que corria se interferisse em assunto tão sério e, por m, presa de amarga perplexidade, decidiu pedir conselho a seu superior imediato, o primeiro-assistente. Este era um jovem médico, Wolfe Macfarlane, querido de todos os estudantes estroinas: 67  inteligente, dissoluto e inescrupuloso em altíssimo grau. Vivera e estudara no exterior. Seus modos eram agradáveis e um tanto ousados. Era uma autoridade em teatro, habilidoso no gelo ou na relva com um par de patins ou um taco de golfe; vestia-se com audácia elegante e, para rematar sua glória, possuía um cabriolé e um vigoroso cavalo de trote. 
Tinha intimidade com Fettes; mais ainda, seus respectivos encargos pediam alguma vida em comum; e, quando as peças escasseavam, a dupla saía campo afora no cabriolé de Macfarlane para visitar e profanar algum cemitério isolado, chegando à porta da sala de dissecção com o butim ainda antes do amanhecer. Naquela manhã específica, Macfarlane chegou um pouco mais cedo que de hábito. Fettes ouviu e foi a seu encontro na escada, contou o caso e mostrou-lhe a causa 
de seu alarme. Macfarlane examinou as marcas no corpo.
“De fato”, disse, com um aceno de cabeça, “parece suspeito.”
“E então, o que devo fazer?”, indagou Fettes.
“Fazer?”, repetiu o outro. “Você quer fazer alguma coisa? Eu diria que, quanto menos se falar no assunto, melhor.”
“Alguém mais pode reconhecê-la”, objetou Fettes. “Ela era tão conhecida quanto a Castle Rock. 68 ”
“Esperemos que não”, disse Macfarlane. “E se alguém reconhecer – bem, você não reconheceu, não é? E ponto fi nal. O fato é que a coisa toda já vem de muito tempo. Remexa na lama e você vai en ar K. numa encrenca feia; e você mesmo vai se enrascar. E eu também, aliás. Fico me perguntando que gura a gente faria, ou o que teríamos a dizer no banco das testemunhas. Da minha parte, só tenho 
certeza de uma coisa: que, em termos práticos, todas as nossas peças foram assassinadas.” “Macfarlane!”, exclamou Fettes. 
“Ora essa!”, riu-se o outro. “Como se você não tivesse descofin ado!”
“Descofi ar é uma coisa…”
“E provar é outra. Claro, eu sei; e lamento tanto quanto você que isto tenha vindo parar aqui”, disse ele, tocando o corpo com a bengala. “Para mim, o melhor a fazer é não reconhecê-la; como, aliás”, acrescentou friamente, “não reconheço. Fique à vontade, se quiser reconhecer. Não dito regras, mas creio que um homem do mundo faria como eu; e, se me permite, imagino que é isso o que K. espera de nós. A questão é: por que ele nos escolheu para assistentes? E a resposta é: porque não queria gente bisbilhoteira.”
Era esse, exatamente, o tom mais adequado para infliuenciar as ideias de um rapaz como Fettes. Ele resolveu imitar Macfarlane. O corpo da pobre moça foi devidamente dissecado e ninguém reparou, ou pareceu reconhecê-la.Uma tarde, terminado o trabalho do dia, Fettes passou por uma taberna popular e deu com Macfarlane sentado na companhia de um desconhecido. Era um homem baixo, muito pálido e de cabelo escuro, de olhos negros como carvão. Seus traços faziam pensar num intelecto e num refi namento que mal a‚oravam em seus modos, pois, visto mais de perto, ele logo se revelou um homem grosseiro, vulgar e obtuso. Contudo, exercia notável controle sobre Macfarlane; dava ordens como um grão-paxá; exaltava-se à menor discussão ou demora e fazia comentários rudes sobre o servilismo com que era servido. Aquele sujeito insuportável logo se afeiçoou a Fettes, cumulou-o de bebidas e fez-lhe a honra de con fidências singulares sobre sua carreira pregressa. Se um décimo do que contou fosse verdade, tratava-se de um patife dos mais nauseabundos; e a vaidade do rapaz foi atiçada pela atenção de um homem experiente como aquele.
“Sou um sujeitinho de raça ruim”, observou o estranho, “mas o Macfarlane… Esse sim. Toddy Macfarlane. É assim que eu o chamo. Toddy, peça mais um copo para o seu amigo.” Ou então: “Toddy, mexa-se, feche aquela porta”. “Toddy me odeia”, ele repetiu. “É verdade, Toddy. Odeia, sim!”
“Não me chame por esse nome maldito”, grunhiu Macfarlane.
“Ouça essa! Você já viu garoto brincar com faca? Ele adoraria passar a faca em mim”, disse o desconhecido.
“Nós, médicos, fazemos bem melhor”, disse Fettes. 
“Quando não gostamos de um velho amigo, nós o dissecamos.”
Macfarlane levantou a vista de repente, como se a brincadeira não fosse nem um pouco de seu gosto.
A tarde chegou ao m. Gray – pois era este o nome do desconhecido – convidou Fettes a acompanhá-los no jantar, pediu um festim tão suntuoso que a taberna inteira se alvoroçou e, concluído o assunto, mandou que Macfarlane pagasse a conta. Separaram-se tarde da noite; o tal Gray estava inenarravelmente bêbado. Macfarlane, sóbrio de fúria, ruminava o dinheiro que fora obrigado a esbanjar e as gozações que fora obrigado a engolir. Fettes, com variadas bebidas cantando na cabeça, voltou para casa a passadas incertas e com o espírito em suspenso. No dia seguinte Macfarlane faltou às aulas. Fettes sorriu para si mesmo imaginando-o a pajear o intolerável Gray de taberna em taberna. Tão logo soou a hora da liberdade, pôs-se a percorrer a cidade em busca dos companheiros da noite anterior. Contudo, ao não encontrá-los em lugar nenhum, voltou cedo para casa, foi cedo para a cama e dormiu o sono dos justos.
Às quatro da manhã, foi despertado pelo sinal bem conhecido. Quando chegou à porta, ficou pasmo ao ver Macfarlane em seu cabriolé e, no cabriolé, um daqueles pacotes compridos e horripilantes a que estava tão acostumado.
“O que houve”, exclamou. “Saiu sozinho? Como conseguiu?”
Mas Macfarlane, grosseiro, mandou que se calasse e prestasse atenção no trabalho. Depois que levaram o corpo para cima e o depositaram sobre a mesa, Macfarlane fez menção de ir embora. Depois se deteve e pareceu hesitar; por m, disse com algum constrangimento: “É melhor você dar uma olhada no rosto”. “É melhor”, repetiu, enquanto Fettes o tava espantado.
“Mas onde e como e onde você encontrou este aqui?”, 
exclamou Fettes.
“Olhe o rosto”, foi a única resposta.
Fettes estava desconcertado; estranhas dúvidas o assediavam. Olhava do jovem médico para o corpo e tornava ao primeiro. Por m, num repelão, fez como lhe mandavam. Quase esperava a visão que veio de encontro a seus olhos, e mesmo assim o impacto foi cruel. Ver ali, fi xado na rigidez da morte e nu sobre a aniagem grosseira, o homem que deixara bem-vestido, entupido de carne e vício, na soleira de uma taberna, despertou, até mesmo no insensível Fettes, alguns dos terrores da consciência. Era um cras tibi que ecoava em sua alma dois conhecidos seus acabarem estendidos naquelas mesas gélidas. Mas esses eram apenas pensamentos secundários. Sua maior preocupação dizia respeito a Wolfe. Despreparado para um desa o de tal monta, não sabia como encarar o colega. Não ousava erguer a vista, não dispunha de palavras nem de voz.
Foi o próprio Macfarlane quem deu o primeiro passo. Veio quieto por trás e pousou a mão no ombro do outro, gentilmente, mas com fi rmeza.
“Richardson pode car com a cabeça”, disse ele.
O tal Richardson era um estudante que havia muito cobiçava aquela parte do corpo humano para dissecar. Não houve resposta, e o assassino retomou: “Falando em negócios, você precisa me pagar; lembre--se, as suas contas precisam bater”.
Fettes recobrou alguma voz, uma sombra da própria: “Pagar!”, exclamou. “Pagar pelo quê?” “Ora, é claro que você precisa pagar. De qualquer maneira e por todas as razões do mundo, você precisa pagar”, retrucou o outro. “Eu não deixaria assim de presente e você não receberia assim de presente; isso comprometeria a nós dois. Como no caso de Jane Galbraith. 
Quanto mais erradas estão as coisas, mais a gente tem de 
agir como se tudo estivesse em ordem. Onde o velho K. guarda o dinheiro?’
“Ali”, respondeu Fettes com voz rouca, apontando para um armário no canto.
“Então me dê a chave”, disse o outro, calmamente, estendendo a mão. Houve uma hesitação momentânea e os dados foram lançados. Macfarlane não conseguiu conter um esgar nervoso, marca in nitesimal de um alívio imenso, ao sentir a chave entre os dedos. Abriu o armário, tirou tinta, pena 
e caderno de um compartimento e separou, do dinheiro guardado numa gaveta, a soma cabível na situação.
“Agora, olhe aqui”, disse, “o pagamento foi realizado primeira prova da sua boa-fé, primeiro passo para a sua segurança. Falta agora encerrar o assunto com um segundo passo. Dê entrada do pagamento no livro de contas e nem o diabo poderá com você.”
Os segundos seguintes foram para Fettes um paroxismo de pensamentos; mas, na balança de seus terrores, o mais imediato acabou por triunfar. Qualquer di culdade futura parecia quase bem-vinda se conseguisse escapar ao confronto presente com Macfarlane. Largou a vela que estivera carregando aquele tempo todo e, com letra fi rme, deu entrada de data, natureza e montante da transação.
“E agora”, disse Macfarlane, “é justo que você embolse o lucro. Já recebi a minha parte. Aliás, quando um homem do mundo tem um golpe de sorte e alguns xelins a mais no bolso – bem, co embaraçado em mencionar isso, mas há uma regra de conduta para esses casos. Nada de banquetes, nada de livros caros, nada de acertos de dívidas; tome emprestado, mas nunca empreste.”“Macfarlane”, começou Fettes, ainda um pouco rouco, “pus meu pescoço no cepo para lhe fazer um favor.”
“Um favor?”, exclamou Wolfe. “Ora, vamos e venhamos! Até onde percebo a situação, você fez o que tinha de fazer para fi car protegido. Imagine que eu me metesse numa enrascada, o que seria de você? Este segundo probleminha deriva claramente do primeiro. O senhor Gray é a continuação da senhorita Galbraith. Não dá para começar e depois parar. Se você começa, tem de continuar começando; essa é a verdade. Não há repouso para os ímpios.”
Um sentimento horrível de baixeza e a traição do destino tomaram conta da alma do infeliz estudante.
“Meu Deus!”, exclamou. “O que eu z? E quando comecei? Ser monitor universitário – em nome da razão, que mal há nisso? Meu colega Service estava de olho nesse posto; o posto podia ter sido de Service. Será que ele estaria na situação em que eu estou agora?”
“Meu caro amigo”, disse Macfarlane, “que criança você é! Por acaso aconteceu alguma coisa com você? Por acaso pode acontecer alguma coisa com você se calar o bico? Homem, você não sabe como é a vida? Estamos divididos em dois grupos – leões e cordeiros. Se você for cordeiro, vai acabar em cima de uma dessas mesas, como Gray ou Jane Galbraith; se for leão, vai viver e comandar um cavalo. Como eu, como K., como todo aquele que tem alguma inteligência, alguma coragem. Você hesita entre os cordeiros. Mas olhe para K.! Meu caro amigo, você é inteligente, você tem topete. Gosto de você, e K. também. Você nasceu para liderar a caçada; e eu lhe digo, por minha honra e por minha experiência da vida, que daqui a três dias você rirá desses espantalhos feito criança numa peça de escola.” Dito isso, Macfarlane se retirou e se afastou pela ruela em seu cabriolé a m de se refugiar da luz do dia. Fettes  fi cou sozinho com seus remorsos. Via o apuro terrível em que estava metido. Viu, com indizível desalento, que sua fraqueza não tinha limites e que, de concessão em concessão, descera de árbitro do destino de Macfarlane a cúmplice pago e indefeso. Teria dado qualquer coisa neste mundo para ter sido um pouco mais corajoso momentos antes, mas não lhe ocorreu que ainda poderia ser corajoso. O segredo de Jane Galbraith e a maldita entrada no livro de 
contas cerraram sua boca.
As horas se passaram; os alunos começaram a chegar; os membros do pobre Gray foram distribuídos para este e para aquele e recebidos sem comentários. Richardson foi agraciado com a cabeça e, mesmo antes de soar a hora da liberdade, Fettes já estremecia de júbilo ao perceber quanto já haviam avançado rumo à impunidade. Por dois dias continuou a observar, com júbilo crescente, o terrível processo de mascaramento. No terceiro dia, Macfarlane apareceu novamente. Disse que estivera doente, mas compensou o tempo perdido com a energia com que dirigiu os estudantes. Richardson, em especial, recebeu assistência e conselhos inestimáveis, e o estudante, animado com os elogios do monitor, inflamado por esperanças ambiciosas, já via a medalha a seu alcance. Antes que a semana chegasse ao m, a profecia de Macfarlane já se cumprira. Fettes sobrevivera a seus terrores e esquecera a própria baixeza. Começara a felicitar-se pela própria coragem e ajeitara a história no próprio espírito de maneira a poder olhar para trás com orgulho doentio. 
Pouco via o cúmplice. Encontravam-se, é claro, durante o trabalho; recebiam juntos as ordens de K. Às vezes trocavam uma ou duas palavras a sós e Macfarlane se mostrava particularmente gentil e jovial do começo ao m. Mas era evidente que ele evitava toda e qualquer referência ao segredo que os dois partilhavam; e mesmo quando Fettes lhe disse num sussurro que havia jogado sua sorte com os 
leões e que deixara os cordeiros de lado, apenas fez sinal, sorridente, para que o outro fi casse quieto. Com o tempo, uma nova ocasião voltou a aproximar a dupla. O sr. K. via-se novamente sem peças; os alunos manifestavam impaciência e o professor gostava de contar entre seus atributos o fato de estar sempre bem abastecido. Ao mesmo tempo chegou a notícia de que haveria um enterro no rústico cemitério de Glencorse. O tempo pouco alterou o lugar em questão. Na época, como hoje em dia, o cemitério cava numa encruzilhada, afastado de toda habitação humana e a uma braça de profundidade sob a folhagem de seis cedros. Os balidos das ovelhas nas colinas vizinhas, os córregos à direita e à esquerda, um cantando alto entre os seixos, o outro escoando furtivamente de poça em poça, o rumorejar do vento nas velhas nogueiras em flor e, uma vez a cada sete dias, a voz do sino e as velhas canções do chantre 70  eram os únicos sons que perturbavam o silêncio que cercava a igreja rural. O Homem da Ressurreição – para usar uma alcunha da época – não se deixaria deter por nenhum dos preceitos sagrados da religião comum. Era parte de seu ofício desprezar e profanar os sinais entalhados em velhas lápides, os caminhos gastos pelos pés de éis e enlutados, as oferendas e as inscrições de um afeto consternado. Para aqueles lugarejos rústicos, onde o amor costuma ser mais tenaz e onde alguns laços de sangue ou camaradagem unem toda uma paróquia, o ladrão de corpos, longe de sentir-se repelido pelo respeito natural, era atraído pela facilidade e a segurança da tarefa. Os corpos depositados na terra na jubilosa esperança de um despertar bem diferente eram surpreendidos por uma ressurreição apressada e atroz, à força de pá, picareta e luz de lampião. O caixão era forçado, os paramentos rasgados e os restos melancólicos, vestidos em aniagem, depois de sacolejar horas a o por estradas secundárias, eram finalmente expostos ao ultraje máximo diante de uma turma de rapazes boquiabertos.
Um pouco como dois abutres adejando sobre um cordeiro moribundo, Fettes e Macfarlane deviam atacar um túmulo naquele lugar de repouso calmo e verdejante. A esposa de um granjeiro, mulher que vivera sessenta anos e que era conhecida de todos pela boa manteiga que fazia e por sua conversa virtuosa, seria arrancada de seu túmulo à meia-noite e levada, morta e nua, para aquela cidade distante que sempre honrara com suas vestes domingueiras; a romper da aurora, seu lugar ao lado dos familiares estaria vazio; seus membros inocentes e quase veneráveis seriam expostos à última curiosidade do anatomista.Certa noite a dupla se pôs a caminho já bem tarde, ambos envoltos em mantos e com uma formidável garrafa à mão. Chovia sem interrupção – uma chuva fria, densa, fustigante. Vez por outra soprava um pé de vento que a cortina d’água subjugava. Apesar da garrafa, cobriram um trecho triste e silencioso até Penicuik, onde haviam planejado pernoitar. Pararam uma vez para esconder os apetrechos num arbusto fechado, não longe do cemitério, e outra mais no Recanto do Pescador, para comer uma torrada diante do fogo da cozinha e alternar goles de uísque com um copo de cerveja. Chegando a seu destino, o cabriolé foi guardado e o cavalo alimentado e alojado. Os dois jovens médicos se recolheram a um reservado para fruir do melhor jantar e do melhor vinho que a casa pudesse oferecer. As luzes, a lareira, a chuva que batia na vidraça, a tarefa fria e absurda – tudo atiçava o prazer que aquele jantar lhes proporcionava. A cada copo, seu ânimo 
melhorava. Pouco depois, Macfarlane estendeu uma pilha de ouro para o companheiro. “Uma gentileza”, disse ele. “Entre amigos, esses pequenos acertos devem ser feitos o mais depressa possível.”
Fettes embolsou o dinheiro e saudou os sentimentos do amigo. “Você é um lósofo”, exclamou. “Eu era uma besta até conhecer você. Você e K. – vocês dois, com a breca, vão fazer de mim um homem.”
“É claro que sim”, aplaudiu Macfarlane. “Um homem? Ouça bem, só um homem poderia me ajudar naquela outra madrugada. Muito grandalhão de quarenta anos, lerdo e covarde, teria entregue os bofes só de ver aquela maldita coisa; mas não você, você manteve a cabeça erguida. Eu vi tudo.”
“Bem, e por que não?”, vangloriou-se Fettes. “O problema não era meu. Não havia nada a ganhar com o estardalhaço, e, além do mais, eu podia contar com a sua gratidão, 
não é?” E deu tapinhas no bolso fazendo tilintar as moedas de ouro. Macfarlane sentiu uma pontada de alarme ao ouvir aquelas palavras desagradáveis. Talvez tivesse se arrependido de ter instruído o jovem companheiro com tanto êxito, mas não houve tempo de retrucar, pois o outro prosseguiu em seu rompante de bazó a ruidosa:“A coisa toda está em não ter medo. Agora, cá entre nós, não quero ser enforcado – disso eu tenho certeza; mas nasci desprezando as lamúrias, Macfarlane. Inferno, Deus, Diabo, certo, errado, pecado, crime e toda essa galeria de antiguidades – isso tudo pode assustar criancinhas, mas homens do mundo como eu e você desprezam essas coisas. 
Um brinde à memória de Gray!”Àquela altura, a noite já ia avançada. O cabriolé, novamente arreado, conforme as instruções, foi levado até a porta com os dois lampiões muito brilhantes, e os dois rapazes pagaram a conta e tomaram a estrada. Anunciaram que seguiam rumo a Peebles e tocaram naquela direção até ultrapassadas as últimas casas do lugarejo; depois, apagados os lampiões, voltaram atrás e seguiram por uma estrada secundária na direção de Glencorse. Não havia outro som além do que eles produziam ao passar e da chuva estridente e incessante. Estava escuro como breu; aqui e ali, um portão branco ou uma pedra branca num muro guiavam-nos brevemente pelo meio da noite; mas, na maior parte do tempo, foi a passo lento, quase às apalpadelas, que os dois abriram caminho na escuridão ressonante rumo a seu destino solene e remoto. Em meio aos bosques enlameados que cobriam as proximidades do cemitério, não houve brilho que os ajudasse, e foi necessário riscar um fósforo e reacender uma das lanternas do cabriolé. Assim, sob as árvores gotejantes, rodeados de grandes sombras moventes, atingiram o palco de seus labores profanos.
Ambos tinham experiência no ofício e na força com a pá; mal precisaram de vinte minutos para serem recompensados por um tamborilar surdo no tampo do caixão. 
Nesse mesmo instante, Macfarlane, tendo machucado uma das mãos num pedregulho, atirou-o descuidadamente para trás. A cova em que estavam metidos quase até os ombros cava junto à beira do platô do cemitério; e, afim de iluminar melhor os trabalhos, o lampião do cabriolé fora apoiado a uma árvore, junto ao barranco íngreme que descia para o córrego. O acaso zera mira certeira com a pedra. Ouviu-se um retinir de vidro quebrado; a noite caiu sobre eles; sons ora surdos, ora vibrantes anunciavam o rolar da lanterna barranco abaixo e suas ocasionais colisões com as árvores. Uma pedra ou duas, deslocadas na queda, ressoaram nas profundidades da ravina; em seguida o silêncio, como a noite, retomou seu domínio; e, por mais que tentassem, nada ouviam exceto a chuva, que ora caía impulsionada pelo vento, ora martelava sem cessar sobre milhas e mais milhas de campo aberto.
Estavam tão próximos do m de sua tarefa abjeta que julgaram melhor terminá-la no escuro. O caixão foi exumado e forçado; o corpo foi inserido no saco ensopado e carregado até o cabriolé; um dos dois tomou assento enquanto o outro, puxando o cavalo pela brida, avançava ao longo do muro e dos arbustos até chegarem ao Recanto do Pescador. Ali havia um brilho débil e difuso, que os dois saudaram como se fosse a luz do dia; guiando-se por ela, açularam o cavalo e saíram sacolejando na direção da cidade. Os dois tinham ficado completamente empapados durante as operações, e agora, com o cabriolé saltitando sobre as valas profundas, a coisa aprumada entre eles cambava ora para um lado, ora para o outro. A cada vez que aquele contato horrendo se repetia, eles o repeliam depressa; e o processo, por natural que fosse, começou a dar nos nervos dos dois parceiros. Macfarlane fez alguma piada de mau gosto sobre a esposa do granjeiro, que soou oca em seus lábios e caiu no silêncio. O fardo torpe continuava a sacolejar de um lado para o outro; ora a cabeça repousava, con fiante, sobre os ombros deles, ora a aniagem  ensopa da batia gelada em seus rostos. A alma de Fettes começou a ser tomada por uma sensação de congelamento. Fettes observava o fardo e tinha a impressão de que de alguma maneira ele havia cado maior que era no começo. Por todo o campo e de todas as distâncias, os cães das fazendas acompanhavam a passagem do cabriolé com uivos trágicos; e ele se convencia mais e mais de que algum milagre perverso se consumara, de que alguma transformação inominável afetara o corpo morto, de que os cachorros uivavam de medo daquele fardo maldito. “Pelo amor de Deus”, disse Fettes, fazendo força para falar. “Pelo amor de Deus, vamos acender uma luz!” Aparentemente, Macfarlane sentia algo do mesmo gênero; pois, apesar de nada responder, ele deteve o cavalo, passou as rédeas para o companheiro, desceu do assento e tratou de acender o lampião remanescente. Não tinham ido além da encruzilhada para Auchendinny. A chuva ainda caía como se o dilúvio fosse voltar, e não foi fácil fazer lume naquele mundo de escuridão e umidade. Quando, enfi m, a chama azul e bruxuleante foi transferida para o 
pavio e começou a se expandir e a iluminar, lançando um amplo círculo de brilho nebuloso ao redor do cabriolé, os dois homens puderam ver-se um ao outro, bem como a coisa que traziam consigo. A chuva amoldara o pano grosseiro aos contornos do corpo; a cabeça se distinguia do tronco, os ombros pareciam bem modelados; alguma coisa ao mesmo tempo espectral e humana fazia com que os dois viajantes não despregassem os olhos daquele companheiro de viagem fantasmagórico.
Por algum tempo, Macfarlane continuou imóvel, segurando o lampião. Um temor sem nome, como um lençol molhado, parecia enfaixar o corpo e esticar a pele do rosto de Fettes; um temor absurdo, um horror àquilo que não podia ser continuava a crescer em seu cérebro. Um momento mais, e ele teria falado. Mas seu camarada adiantou-se.“Isto não é uma mulher”, disse Macfarlane com voz sumida. “Era uma mulher quando a metemos no saco”, sussurrou Fettes.
“Segure o lampião”, disse o outro. “Quero ver o rosto.” E, enquanto Fettes erguia o lampião, seu companheiro desamarrou as cordas do saco e puxou para baixo a parte que cobria a cabeça. A luz caiu em cheio sobre as feições morenas e bem de nidas, sobre as faces bem barbeadas de um semblante mais que familiar, muitas vezes visto nos sonhos dos dois rapazes. Um grito selvagem soou em meio à noite; cada em deles saltou para um lado da estrada; o lampião caiu, quebrou e se apagou; e o cavalo, aterrorizado com a insólita comoção, deu um pinote e disparou a galope rumo a Edimburgo, levando consigo, único ocupante do cabriolé, o corpo morto e havia muito dissecado de Gray.

Tradução de Samuel Titan Jr.

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Pai contra Mãe - Machado de Assis



Resultado de imagem para pai contra mãe machado de assisA ESCRAVIDÃO levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-deflandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber. perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras. O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado. Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando. Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha promessa: "gratificar-se-á generosamente", -- ou "receberá uma boa gratificação". Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoutasse. Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem. Cândido Neves, -- em família, Candinho,-- é a pessoa a quem se liga a história de uma fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos. Tinha um defeito grave esse homem, não agüentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade; é o que ele chamava caiporismo. Começou por querer aprender tipografia, mas viu cedo que era preciso algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante; foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo de uma repartição anexa ao Ministério do Império, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de obtidos. Quando veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais que dívidas, ainda que poucas, porque morava com um primo, entalhador de ofício. Depois de várias tentativas para obter emprego, resolveu adotar o ofício do primo, de que aliás já tomara algumas lições. Não lhe custou apanhar outras, mas, querendo aprender depressa, aprendeu mal. Não fazia obras finas nem complicadas, apenas garras para sofás e relevos comuns para cadeiras. Queria ter em que trabalhar quando casasse, e o casamento não se demorou muito. Contava trinta anos. Clara vinte e dous. Ela era órfã, morava com uma tia, Mônica, e cosia com ela. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco, mas os namorados apenas queriam matar o tempo; não tinham outro empenho. Passavam às tardes, olhavam muito para ela, ela para eles, até que a noite a fazia recolher para a costura. O que ela notava é que nenhum deles lhe deixava saudades nem lhe acendia desejos. Talvez nem soubesse o nome de muitos. Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia a tia, um pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de longe; algum que parasse, era só para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la, deixá-la e ir a outras. O amor traz sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves, sentiu que era este o possível marido, o marido verdadeiro e único. O encontro deu-se em um baile; tal foi-- para lembrar o primeiro ofício do namorado, -- tal foi a página inicial daquele livro, que tinha de sair mal composto e pior brochado. O casamento fez-se onze meses depois, e foi a mais bela festa das relações dos noivos. Amigas de Clara, menos por amizade que por inveja, tentaram arredá-la do passo que ia dar. Não negavam a gentileza do noivo, nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes; diziam que era dado em demasia a patuscadas. --Pois ainda bem, replicava a noiva; ao menos, não caso com defunto. --Não, defunto não; mas é que... Não diziam o que era. Tia Mônica, depois do casamento, na casa pobre onde eles se foram abrigar, falou-lhes uma vez nos filhos possíveis. Eles queriam um, um só, embora viesse agravar a necessidade. --Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia à sobrinha. --Nossa Senhora nos dará de comer, acudiu Clara. Tia Mônica devia ter-lhes feito a advertência, ou ameaça, quando ele lhe foi pedir a mão da moça; mas também ela era amiga de patuscadas, e o casamento seria uma festa, como foi. A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço. Ela cosia agora mais, ele saía a empreitadas de uma cousa e outra; não tinha emprego certo. Nem por isso abriam mão do filho. O filho é que, não sabendo daquele desejo específico, deixava-se estar escondido na eternidade. Um dia. porém, deu sinal de si a criança; varão ou fêmea, era o fruto abençoado que viria trazer ao casal a suspirada ventura. Tia Mônica ficou desorientada, Cândido e Clara riram dos seus sustos. --Deus nos há de ajudar, titia, insistia a futura mãe. A notícia correu de vizinha a vizinha. Não houve mais que espreitar a aurora do dia grande. A esposa trabalhava agora com mais vontade, e assim era preciso, uma vez que, além das costuras pagas, tinha de ir fazendo com retalhos o enxoval da criança. À força de pensar nela, vivia já com ela, media-lhe fraldas, cosia-lhe camisas. A porção era escassa, os intervalos longos. Tia Mônica ajudava, é certo, ainda que de má vontade. --Vocês verão a triste vida, suspirava ela. --Mas as outras crianças não nascem também? perguntou Clara. --Nascem, e acham sempre alguma cousa certa que comer, ainda que pouco... --Certa como? --Certa, um emprego, um ofício, uma ocupação, mas em que é que o pai dessa infeliz criatura que aí vem gasta o tempo? Cândido Neves, logo que soube daquela advertência, foi ter com a tia, não áspero mas muito menos manso que de costume, e lhe perguntou se já algum dia deixara de comer. --A senhora ainda não jejuou senão pela semana santa, e isso mesmo quando não quer jantar comigo. Nunca deixamos de ter o nosso bacalhau... --Bem sei, mas somos três. -- Seremos quatro. --Não é a mesma cousa. -- Que quer então que eu faça, além do que faço? -- Alguma cousa mais certa. Veja o marceneiro da esquina, o homem do armarinho, o tipógrafo que casou sábado, todos têm um emprego certo... Não fique zangado; não digo que você seja vadio, mas a ocupação que escolheu é vaga. Você passa semanas sem vintém. -- Sim, mas lá vem uma noite que compensa tudo, até de sobra. Deus não me abandona, e preto fugido sabe que comigo não brinca; quase nenhum resiste, muitos entregam-se logo. Tinha glória nisto, falava da esperança como de capital seguro. Daí a pouco ria, e fazia rir à tia, que era naturalmente alegre, e previa uma patuscada no batizado. Cândido Neves perdera já o ofício de entalhador, como abrira mão de outros muitos, melhores ou piores. Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo. Não obrigava a estar longas horas sentado. Só exigia força, olho vivo, paciência, coragem e um pedaço de corda. Cândido Neves lia os anúncios, copiava-os, metia-os no bolso e saía às pesquisas. Tinha boa memória. Fixados os sinais e os costumes de um escravo fugido, gastava pouco tempo em achá-lo, segurá-lo, amarrá-lo e levá-lo. A força era muita, a agilidade também. Mais de uma vez, a uma esquina, conversando de cousas remotas, via passar um escravo como os outros, e descobria logo que ia fugido, quem era, o nome, o dono, a casa deste e a gratificação; interrompia a conversa e ia atrás do vicioso. Não o apanhava logo, espreitava lugar azado, e de um salto tinha a gratificação nas mãos. Nem sempre saía sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam, mas geralmente ele os vencia sem o menor arranhão. Um dia os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham já, como dantes, meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos novas e hábeis. Como o negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e numa corda, foi aos jornais, copiou anúncios e deitou-se à caçada. No próprio bairro havia mais de um competidor. Quer dizer que as dívidas de Cândido Neves começaram de subir, sem aqueles pagamentos prontos ou quase prontos dos primeiros tempos. A vida fez-se difícil e dura. Comia-se fiado e mal; comia-se tarde. O senhorio mandava pelo aluguéis. Clara não tinha sequer tempo de remendar a roupa ao marido, tanta era a necessidade de coser para fora. Tia Mônica ajudava a sobrinha, naturalmente. Quando ele chegava à tarde, via-se-lhe pela cara que não trazia vintém. Jantava e saía outra vez, à cata de algum fugido. Já lhe sucedia, ainda que raro, enganar-se de pessoa, e pegar em escravo fiel que ia a serviço de seu senhor; tal era a cegueira da necessidade. Certa vez capturou um preto livre; desfez-se em desculpas, mas recebeu grande soma de murros que lhe deram os parentes do homem. --É o que lhe faltava! exclamou a tia Mônica, ao vê-lo entrar, e depois de ouvir narrar o equívoco e suas conseqüências. Deixe-se disso, Candinho; procure outra vida, outro emprego. Cândido quisera efetivamente fazer outra cousa, não pela razão do conselho, mas por simples gosto de trocar de ofício; seria um modo de mudar de pele ou de pessoa. O pior é que não achava à mão negócio que aprendesse depressa. A natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado à mãe, antes de nascer. Chegou o oitavo mês, mês de angústias e necessidades, menos ainda que o nono, cuja narração dispenso também. Melhor é dizer somente os seus efeitos. Não podiam ser mais amargos. --Não, tia Mônica! bradou Candinho, recusando um conselho que me custa escrever, quanto mais ao pai ouvi-lo. Isso nunca! Foi na última semana do derradeiro mês que a tia Mônica deu ao casal o conselho de levar a criança que nascesse à Roda dos enjeitados. Em verdade, não podia haver palavra mais dura de tolerar a dous jovens pais que espreitavam a criança, para beijá-la, guardá-la, vê-la rir, crescer, engordar, pular... Enjeitar quê? enjeitar como? Candinho arregalou os olhos para a tia, e acabou dando um murro na mesa de jantar. A mesa, que era velha e desconjuntada, esteve quase a se desfazer inteiramente. Clara interveio. -- Titia não fala por mal, Candinho. --Por mal? replicou tia Mônica. Por mal ou por bem, seja o que for, digo que é o melhor que vocês podem fazer. Vocês devem tudo; a carne e o feijão vão faltando. Se não aparecer algum dinheiro, como é que a família há de aumentar? E depois, há tempo; mais tarde, quando o senhor tiver a vida mais segura, os filhos que vierem serão recebidos com o mesmo cuidado que este ou maior. Este será bem criado, sem lhe faltar nada. Pois então a Roda é alguma praia ou monturo? Lá não se mata ninguém, ninguém morre à toa, enquanto que aqui é certo morrer, se viver à míngua. Enfim... Tia Mônica terminou a frase com um gesto de ombros, deu as costas e foi meter-se na alcova. Tinha já insinuado aquela solução, mas era a primeira vez que o fazia com tal franqueza e calor,-- crueldade, se preferes. Clara estendeu a mão ao marido, como a amparar-lhe o ânimo; Cândido Neves fez uma careta, e chamou maluca à tia, em voz baixa. A ternura dos dous foi interrompida por alguém que batia à porta da rua. --Quem é? perguntou o marido. --Sou eu. Era o dono da casa, credor de três meses de aluguel, que vinha em pessoa ameaçar o inquilino. Este quis que ele entrasse. --Não é preciso... --Faça favor. O credor entrou e recusou sentar-se, deitou os olhos à mobília para ver se daria algo à penhora; achou que pouco. Vinha receber os aluguéis vencidos, não podia esperar mais; se dentro de cinco dias não fosse pago, pô-lo-ia na rua. Não havia trabalhado para regalo dos outros. Ao vê-lo, ninguém diria que era proprietário; mas a palavra supria o que faltava ao gesto, e o pobre Cândido Neves preferiu calar a retorquir. Fez uma inclinação de promessa e súplica ao mesmo tempo. O dono da casa não cedeu mais. --Cinco dias ou rua! repetiu, metendo a mão no ferrolho da porta e saindo. Candinho saiu por outro lado. Nesses lances não chegava nunca ao desespero, contava com algum empréstimo, não sabia como nem onde, mas contava. Demais, recorreu aos anúncios. Achou vários, alguns já velhos, mas em vão os buscava desde muito. Gastou algumas horas sem proveito, e tornou para casa. Ao fim de quatro dias, não achou recursos; lançou mão de empenhos, foi a pessoas amigas do proprietário, não alcançando mais que a ordem de mudança. A situação era aguda. Não achavam casa, nem contavam com pessoa que lhes emprestasse alguma; era ir para a rua. Não contavam com a tia. Tia Mônica teve arte de alcançar aposento para os três em casa de uma senhora velha e rica, que lhe prometeu emprestar os quartos baixos da casa, ao fundo da cocheira, para os lados de um pátio. Teve ainda a arte maior de não dizer nada aos dous, para que Cândido Neves, no desespero da crise começasse por enjeitar o filho e acabasse alcançando algum meio seguro e regular de obter dinheiro; emendar a vida, em suma. Ouvia as queixas de Clara, sem as repetir, é certo, mas sem as consolar. No dia em que fossem obrigados a deixar a casa, fá-los-ia espantar com a notícia do obséquio e iriam dormir melhor do que cuidassem. Assim sucedeu. Postos fora da casa, passaram ao aposento de favor, e dous dias depois nasceu a criança. A alegria do pai foi enorme, e a tristeza também. Tia Mônica insistiu em dar a criança à Roda. "Se você não a quer levar, deixe isso comigo; eu vou à Rua dos Barbonos." Cândido Neves pediu que não, que esperasse, que ele mesmo a levaria. Notai que era um menino, e que ambos os pais desejavam justamente este sexo. Mal lhe deram algum leite; mas, como chovesse à noite, assentou o pai levá-lo à Roda na noite seguinte. Naquela reviu todas as suas notas de escravos fugidos . As gratificações pela maior parte eram promessas; algumas traziam a soma escrita e escassa. Uma, porém, subia a cem mil-réis. Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de gesto e de vestido. Cândido Neves andara a pesquisá-la sem melhor fortuna, e abrira mão do negócio; imaginou que algum amante da escrava a houvesse recolhido. Agora, porém, a vista nova da quantia e a necessidade dela animaram Cândido Neves a fazer um grande esforço derradeiro. Saiu de manhã a ver e indagar pela Rua e Largo da Carioca, Rua do Parto e da Ajuda, onde ela parecia andar, segundo o anúncio. Não a achou; apenas um farmacêutico da Rua da Ajuda se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer droga, três dias antes, à pessoa que tinha os sinais indicados. Cândido Neves parecia falar como dono da escrava, e agradeceu cortesmente a notícia. Não foi mais feliz com outros fugidos de gratificação incerta ou barata. Voltou para a triste casa que lhe haviam emprestado. Tia Mônica arranjara de si mesma a dieta para a recente mãe, e tinha já o menino para ser levado à Roda. O pai, não obstante o acordo feito, mal pôde esconder a dor do espetáculo. Não quis comer o que tia Mônica lhe guardara; não tinha fome, disse, e era verdade. Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum prestava. Não podia esquecer o próprio albergue em que vivia. Consultou a mulher, que se mostrou resignada. Tia Mônica pintara-lhe a criação do menino; seria maior a miséria, podendo suceder que o filho achasse a morte sem recurso. Cândido Neves foi obrigado a cumprir a promessa; pediu à mulher que desse ao filho o resto do leite que ele beberia da mãe. Assim se fez; o pequeno adormeceu, o pai pegou dele, e saiu na direção da Rua dos Barbonos. Que pensasse mais de uma vez em voltar para casa com ele, é certo; não menos certo é que o agasalhava muito, que o beijava, que cobria o rosto para preservá-lo do sereno. Ao entrar na Rua da Guarda Velha, Cândido Neves começou a afrouxar o passo. --Hei de entregá-lo o mais tarde que puder, murmurou ele. Mas não sendo a rua infinita ou sequer longa, viria a acabá-la; foi então que lhe ocorreu entrar por um dos becos que ligavam aquela à Rua da Ajuda. Chegou ao fim do beco e, indo a dobrar à direita, na direção do Largo da Ajuda, viu do lado oposto um vulto de mulher; era a mulata fugida. Não dou aqui a comoção de Cândido Neves por não podê-lo fazer com a intensidade real. Um adjetivo basta; digamos enorme. Descendo a mulher, desceu ele também; a poucos passos estava a farmácia onde obtivera a informação, que referi acima. Entrou, achou o farmacêutico, pediu-lhe a fineza de guardar a criança por um instante; viria buscá-la sem falta. --Mas... Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rápido, atravessou a rua, até ao ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma. No extremo da rua, quando ela ia a descer a de S. José, Cândido Neves aproximou-se dela. Era a mesma, era a mulata fujona. --Arminda! bradou, conforme a nomeava o anúncio. Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o pedaço de corda da algibeira, pegou dos braços da escrava, que ela compreendeu e quis fugir. Era já impossível. Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas entendeu logo que ninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu então que a soltasse pelo amor de Deus. --Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor moço! -- Siga! repetiu Cândido Neves. --Me solte! --Não quero demoras; siga! Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho. Quem passava ou estava à porta de uma loja, compreendia o que era e naturalmente não acudia. Arminda ia alegando que o senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria com açoutes,--cousa que, no estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza, ele lhe mandaria dar açoutes. --Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois? perguntou Cândido Neves. Não estava em maré de riso, por causa do filho que lá ficara na farmácia, à espera dele. Também é certo que não costumava dizer grandes cousas. Foi arrastando a escrava pela Rua dos Ourives, em direção à da Alfândega, onde residia o senhor. Na esquina desta a luta cresceu; a escrava pôs os pés à parede, recuou com grande esforço, inutilmente. O que alcançou foi, apesar de ser a casa próxima, gastar mais tempo em lá chegar do que devera. Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda ali ajoelhou-se, mas em vão. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor. --Aqui está a fujona, disse Cândido Neves. -- É ela mesma. --Meu senhor! --Anda, entra... Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinqüenta milréis, enquanto o senhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou. O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono. Cândido Neves viu todo esse espetáculo. Não sabia que horas eram. Quaisquer que fossem, urgia correr à Rua da Ajuda, e foi o que ele fez sem querer conhecer as conseqüências do desastre. Quando lá chegou, viu o farmacêutico sozinho, sem o filho que lhe entregara. Quis esganá-lo. Felizmente, o farmacêutico explicou tudo a tempo; o menino estava lá dentro com a família, e ambos entraram. O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara a escrava fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor. Agradeceu depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda dos enjeitados, mas para a casa de empréstimo com o filho e os cem mil-réis de gratificação. Tia Mônica, ouvida a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem mil-réis. Disse, é verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa do aborto, além da fuga. Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto. -
-Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração.